Somos musicais

Crianças cantando em coro

Graham F. Welsh, professor de Educação Musical, Instituto da Educação, Universidade de Londres (www.isme.org). Tradução do Inglês por Etelvina Pereira, Dra.

[ “Nós somos musicais: é parte do nosso desígnio humano básico.” ]

Em certo sentido, parece bizarro que nos peçam para sermos “defensores” da Música e da Educação Musical pois ambas têm uma omnipresença que se estende à espécie humana. Nós somos musicais: é parte do nosso desígnio humano básico. O cérebro humano tem áreas especializadas cujas funções primordiais trabalham em conjunto para o processamento musical. Somos, também, musicalmente educados, no sentido de que adquirimos comportamentos musicais sofisticados desde a fase pré-natal passando pela experiência da cultura em que nos inserimos.

Não precisamos de uma educação musical formalizada para nos envolvermos intencionalmente com a música e para exibir comportamentos musicais. A educação musical informal está sempre a acontecer porque a experiência do som organizado é um elemento chave no nosso quotidiano. O nosso padrão neuropsicobiológico permite-nos fazer sentido dos e encontrar significado nos padrões de som que são organizados como música dentro da nossa cultura.

Contudo, apesar desta propensão humana para o comportamento musical e do nosso desejo de nos envolvermos numa actividade musical (seja como produtores ou ouvintes), é óbvio que não somos musicalmente idênticos. Conforme vamos envelhecendo, há um crescente envolvimento com a música que depende, em parte, da preferência individual, do contexto para ouvir ou apreciar a música, da disponibilidade de estilos e géneros musicais e também da nossa percepção e rotulação emocional de experiências musicais anteriores – o que molda a medida em que nos vemos como “musicais”. De facto, pode haver alguns indivíduos que pareçam ter um distúrbio congénito no que diz respeito à música e que encontrem pouco sentido ou pouco prazer na actividade musical.

Mas, para a grande maioria, a música é parte integrante do nosso ambiente social e cultural e do seu envolvimento com este, envolvimento que começa antes de nascermos. O ventre é um ambiente relativamente sossegado e a partir do terceiro trimestre o feto é observado a reagir a sons externos, especialmente ao discurso e canções da mãe, bem como a músicas externas.

Em particular, apesar do discurso ser parcialmente abafado e o espectro do som ser reduzido para as suas frequências mais altas, as modulações do tom do discurso da mãe são perfeitamente audíveis. Subsequentemente, como recém-nascidos, demonstramos sensibilidade à voz da nossa mãe comparativamente à de outras mães, bem como sensibilidade à música da nossa cultura maternal – particularmente à música que a mãe ouvia durante a gravidez.

Mais ainda, porque a nossa vida fetal envolve uma corrente sanguínea comum, o envolvimento emocional da mãe com a música (relacionado com a sua condição neuroendócrina) durante a gravidez é também partilhado. A música que ela acha agradável, tranquila, relaxante, emocionante ou aborrecida produzirá em nós um afecto preconcebido associado ao som. Assim entramos no mundo com um preconceito cognitivo e emocional em relação à voz da nossa mãe e à sua música.

Esta teia de linguagem, música, discurso e canção desde a fase pré-natal passando pela infância é evidenciada em interacções vocais entre os nossos pais (os que cuidam de nós) e nós próprios enquanto crianças. Os sons vocais destes adultos são intrinsecamente musicais e encorajam sons imitativos, cantar espontâneo e crescente domínio vocal da nossa parte durante os primeiros dezoito meses de vida. As mães exageram aspectos acústicos críticos no discurso (tais como dar ênfase a vogais e elevar o tom vocal) quando se nos dirigem enquanto crianças pequenas. Têm também, frequentemente, um repertório especial de canções de embalar que são caracterizadas por tons relativamente mais altos, tempos mais lentos e qualidade de voz mais emotiva quando comparadas com o seu estilo de cantar usual.

Estes elementos comuns do comportamento vocal na nossa educação enquanto crianças pequenas são suportes essenciais para o desenvolvimento musical subsequente e comportamentos musicais diferentes. Contudo, muitas destas interacções vocais e musicais não são conscientes. Os pais raramente se apercebem de como estão a encorajar, moldar e construir o nosso desenvolvimento musical. Consequentemente, qualquer relativa falta de interacção entre um progenitor e nós, qualquer relativa escassez no nosso ambiente sonoro local, tal como um encorajamento limitado a participar e explorar o som, poderá conduzir a um menor desenvolvimento musical, quando comparado com o de outros que têm essas experiências e oportunidades.

Esta diversidade de experiência musical pré-escolar precisa de ser entendida e tratada quando as crianças entram no sistema educacional se quisermos assegurar que a musicalidade básica de cada criança é desenvolvida até ao seu potencial máximo, seja ele qual for. Se o comportamento musical é parte integrante do ser humano, devia ser também parte integrante de qualquer sistema educacional que afirme educar a pessoa no seu todo. Isto não é negar que muita da aprendizagem na música tem lugar fora da escola, mas antes contrapor que tal experiência não escolar pode ser casual, fortuita e irregular ao nível do indivíduo. A música na escola, por consequência, não é apenas um direito educacional e humano básico; devia ser sensivelmente planeada para se dirigir à diversidade das nossas bases musicais, para diferenciar as nossas necessidades musicais e para encorajar o desenvolvimento musical individual.

Por exemplo, crianças cujas mães lhes cantaram durante os primeiros anos de vida e que foram encorajadas a cantar terão grande probabilidade de entrar na escola aos cinco anos como cantores relativamente competentes. Não será surpresa que as crianças que tenham tido menos oportunidades para cantar ou que lhes cantassem, entrarão muito provavelmente na escola como cantores menos competentes.

Infelizmente, este último grupo será mais facilmente rotulado de “não-musical” por adultos insensíveis e mal informados. Comentários negativos de tais professores com base na observação da capacidade de cantar, gera humilhação pública em frente dos amigos e colegas e uma sensação de vergonha e inadequabilidade que poderá levar a que tenha, durante toda a vida, uma auto-percepção de incapacidade musical.

Não precisa de ser assim. Tais comentários negativos e prejudiciais advêm de vários pressupostos falsos, tais como, as pessoas ou são musicais ou “não-musicais” e cantar é uma actividade simples. O facto de algumas crianças e adultos parecerem achar que cantar é fácil esconde a complexidade básica que lhe está subjacente. Cantar envolve palavras e música interligadas num comportamento físico complexo que tem fortes associações culturais. As experiências pré-escolares de algumas crianças levam a que se concentrem no elemento da canção que (para elas) tem maior significado, nomeadamente, as palavras. As mesmas crianças tornam-se muito mais exactas a nível do som se lhes pedirem para se concentrarem apenas nos aspectos musicais da canção sem a “contaminação” perceptual do seu texto.

Mais ainda, há um efeito escolar altamente significativo. A investigação demonstra que, enquanto algumas escolas encorajam nos seu alunos o desenvolvimento do acto de cantar canções, outras não. Em algumas escolas, crianças que são relativamente menos exactas/precisas do que os seus colegas aos cinco anos (na correcção do tom ou das palavras, ou ambas) podem tornar-se ainda mais imprecisas aos sete. Em contraste, noutras escolas, as crianças melhoram significativamente pelos sete anos, apesar de terem demonstrado a mesma competência para cantar aos cinco anos, o que sugere que haverá variações importantes na qualidade do ensino musical de umas escolas para outras.

Parece que muitas crianças (ocidentais) seguem uma sequência faseada na qual o acto de cantar completamente afinado é precedido por comportamentos mais simples, menos complexos. Estas fases parecem estar relacionadas com o foco percepcional da criança, que tende a evoluir do texto da canção para um contorno melódico, depois para uma exactidão baseada em expressões e finalmente para uma correcção generalizada mais desenvolvida. As crianças pequenas têm também um limitado alcance de tom vocal confortável. Este alcance tende a expandir-se à medida que a criança cresce, com as raparigas a apresentarem alcances mais vastos do que os rapazes, para grupos etários consecutivos.

Paralelamente à abordagem de assuntos relacionados com o desenvolvimento, a educação musical escolar terá mais sucesso se abranger quer a pluralidade de culturas musicais dentro da comunidade quer as preferências individuais iniciais das crianças por determinados tipos de música (e de canções). A música e as práticas musicais populares são geralmente deficientemente representadas na música na escola, o que conduz a uma ligação inadequada entre os interesses e as identidades musicais dos alunos e os currículos com que contactam. As crianças pequenas gostam de canções dinâmicas, e frequentemente usam as canções para fins específicos e indivíduos que se relacionam com as suas actividades.

É normal, por isso, que as crianças apresentem um leque de comportamentos e competências relacionados com o acto de cantar como parte do seu desenvolvimento musical. Por causa das suas experiências vocais iniciais com os pais ou educadores, as fronteiras entre cantar e falar não são muito distintas para crianças pequenas. O “cantar desafinado” irá certamente derivar de uma ligação inadequada entre a actual competência para cantar da criança e a “tarefa” musical específica que lhe foi destinada pelo professor/adulto.

Mas crianças e adultos que foram rotulados ou se auto-rotularam de “não-cantores” ou “incapazes de distinguir diferentes notas musicais” mostram-se capazes de melhorar e desenvolver capacidades para cantar, quando lhes são possibilitadas experiências educacionais adequadas.

Somos musicais: precisamos apenas da oportunidade para que a nossa musicalidade seja celebrada e desenvolvida. Este é o principal objectivo da Educação Musical.

Citando:

As crianças que tenham tido menos oportunidades para cantar ou que lhes cantassem, entrarão muito provavelmente na escola como cantores menos competentes.

Graham F. Welsh

 
Crianças cantando em coro

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