Musicoterapia

Criança com autismo, foto Thinkstock

MUSICOTERAPIA

por Levi Leonido

Departamento de Artes e Ofícios da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro Portugal

«Porque a receptividade da música pelo homem é única, a musicoterapia dá uma contribuição única ao seu bem-estar» (Actas do International Symposium of New York (1982).

Historicamente, estão-nos reservadas muitas surpresas, no que diz respeito à Musicoterapia na sua base inicial, ainda desprovida de uma terminologia assente e definida.

Embora não seja nossa intenção entrar pelo lado da terapia clínica, nem pelos caminhos da criação de um ramo da ciência médica ligada à musicoterapia, é nosso dever estabelecer uma ligação entre a musicoterapia e a educação, e desenvolver na actividade docente estratégias de terapia ocupacional, com todas vantagens e desafios que esta prática constitui.

As canções de embalar são o mais banal exemplo de acalmia e consentimento do harmonioso da paz interior, constituindo um sedativo/efeito tranquilizante efectivo e eficaz. O próprio conceito de harmonia (ordem, medida, equilíbrio) já é um efeito em si, pois cria no ouvinte a sensação de estabilidade, serenidade e equilíbrio emocional.

Em tudo quanto é festa, comemoração (funeral, missa, ou outros rituais), a música marca presença como forma de alienar ou preparar emocionalmente o ser humano para um qualquer acontecimento. Na actualidade, até um simples noticiário obedece a regras de acompanhamento de música. O que dizer de um bom filme sem uma boa banda sonora, de uma peça de teatro sem um consistente suporte musical?

Desde a antiguidade à actualidade os exemplos são inúmeros:

  • A música foi utilizada por David para acalmar a angústia do Rei Saúl.
  • A música é usada em rituais de exorcismo e do espantar espíritos malévolos (com guizos, chocalhos, tambores, flautas e a voz).
  • Platão aconselhava, na educação musical do cidadão, a escolha dos modos dórico e frígio, os quais elevam a alma.
  • Aristóteles achava que a audição de algumas melodias que provocassem o êxtase poderiam resolver alguns problemas emocionais.
  • Os árabes exercitavam o “encantamento” do doente através da música (usando uma flauta).
  • No Renascimento, vários livros de medicina referem a importância do uso da música, como forma de distracção dos doentes em relação ao seu sofrimento.
  • No século XVI, constroem-se instrumentos musicais feitos de madeiras medicinais, pensando-se o som e o contacto com esses instrumentos, teriam o mesmo efeito curativo que as plantas medicinais.
  • Richard Brow afirma que a prática coral (canto) influencia o ritmo cardíaco, a digestão e a respiração, recomendando ainda o seu uso em casos de asma crónica periódica.
  • Tissot profere que a música é contra-indicada para as epilepsias.
  • Em 1820 e 1880, um grupo de famosos médicos inicia em França a aplicação sistematizada da musicoterapia.
  • Até ao século XX, a musicoterapia foi sempre ministrada por médicos, sem a presença de músicos, pois não os havia com formação a esse nível, mas em meados deste século aparecem os primeiros musicoterapeutas conhecedores de terapêuticas, patologias e técnicas musicoterapêuticas.
  • Em 1950, funda-se nos E.U.A. a primeira Associação de Musicoterapia (Licenciatura + Congresso Anual).
  • Cria-se em 1958, pelas mãos de J. Alvin, a Associação de Musicoterapia em Inglaterra (revista + pós-graduação + curso).
  • Inicia-se em 1958, na Academia de Música de Viena, um curso (semestral) de musicoterapia.
  • Em 1968 e 1972, aparecem novas associações de Musicoterapia na Argentina e França, respectivamente.
  • Novos cursos de Musicoterapia são criados nos países nórdicos, na Escola Aalborg, conjuntamente com o Real Colégio Dinamarquês das Ciências da Educação.
  • Em 1972, realiza-se o primeiro Seminário Internacional de Musicoterapia, em Paris.
  • Em 1970, Portugal dá os primeiros passos em direcção à musicoterapia, criando um grupo de trabalho integrado no curso de Educação pela Arte e da Associação Portuguesa de Educação Musical.
  • Em 1987, J. Alvin participa numa das muitas actividades ligadas à musicoterapia organizadas pela Fundação Calouste Gulbenkian.
  • A Divisão Regional de Educação Especial da Madeira, juntamente com a Universidade de Montpelier, criou o primeiro curso de formação de musicoterapeutas, donde saíram os fundadores da actual Associação Portuguesa de Musicoterapia.

O aparecimento destas acções com a designação de Musicoterapia terá como origem provável a Grécia Antiga. Os gregos entendiam a música como harmonia máxima, uma vez que estabeleciam uma relação privilegiada entre a saúde e a música, para além de verem a música como entidade possuidora de um valor terapêutico em si mesma, e não apenas como intermediário para comunicar com os espíritos causadores de doenças.

Desta feita, estava descoberto o conceito e a sua primeira utilização enquanto terapia e técnica, embora somente se referissem à audição e não à execução. A audição vulgarmente dita é responsável por uma das maiores fraquezas do ser humano, a capacidade de abstracção plena.

Segundo J. Alvin (1973), a música penetra-nos ouvido adentro. O seu poder de profunda penetração é imenso e contra ele parece não termos grandes defesas. Pode-se não ver, não tocar, não escutar; mas não ouvir, mesmo inconscientemente, parece impossível, exceptuando o caso extremo da surdez.

A música chega mesmo aos indivíduos que consideramos não musicais, embora de maneira diferente, mas chega e não deixa ninguém indiferente, pois tem uma força de associação e de evocação extraordinária. A música tem a capacidade inata de criar imagens mentais, fantasias de um mundo imaginário, pese embora com as suas leis físicas, lógicas e domínios variados.

A musicoterapia encerra sobre si própria um processo terapêutico, enquanto que a música em terapia, é um fundo musical utilizado em sessões terapêuticas (relaxamento com massagens). Em terapia, a música é um meio e não um fim.

O conceito de musicoterapia tem como qualquer outro, algumas vicissitudes óbvias. Para Juliette Alvin (1973), a música é uma das mais fantásticas e profundas experiências humanas. É produto humano, portanto da sua lavra, sendo desta maneira criada pelo homem e dirigida a ele. Tanto se dirige à criança como ao adulto e ao seu corpo, à sua inteligência e, entre outras, às suas emoções.

Para a Association Française de Musicothérapie (1985:6) no seu Dossier d’Observation du Vécu Sonore, Rev. e Musicothérapie, a par da definição Oficial da Federação Mundial de Musicoterapia, consideram que:

«A musicoterapia é a utilização da música e/ou seus elementos (som, ritmo, melodia e harmonia), por um musicoterapeuta qualificado, com um cliente ou grupo, num processo destinado a facilitar e promover comunicação, relacionamento, aprendizagens, mobilização, expressão, organização e outros objectivos terapêuticos relevantes, a fim de atender às suas necessidades físicas, mentais, sociais e cognitivas. O musicoterapia procura desenvolver potenciais e/ou restaurar funções do indivíduo para que ele ou ela alcance uma melhor organização intra e/ou interpessoal e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida, através da prevenção, reabilitação ou tratamento».

Para Arquimedes Santos (1980), a definição de musicoterapia e os seus efeitos retem em si mesma outras considerações, sobre as quais estamos em consonância absoluta, pois não se deseja que se enfrente a musicoterapia como uma sustentada panaceia. Pretende-se, isso sim, estudar o mais concretamente exequível, os relativos efeitos das diversas vertentes do fenómeno extraordinário a que denominamos de música. Nela o som e o ritmo executam, como componentes básicos, um papel fundamental (biologicamente o ser humano afectado).

No que diz respeito à repercussão anímica, a tentativa de uma cientificação do fenómeno musical torna-se dificilmente objectável. Por exemplo, para evocar os mitos de Orfeu e Pan, quem não sentiu psiquicamente os efeitos da música? Para além de Orfeu e Pan, os mitos de Hermes e Anfion, são exemplos clássicos e dignos de nota sobre os efeitos transcendentes da música ao longo dos tempos.

No entender de E. Lecourt (1988), a musicoterapia pretende ser uma real aproximação sensorial sonora, essencialmente com fins terapêuticos, de alguns entraves psicológicos e de ligeiras patologias mentais. Os primeiros terapeutas a aplicar a musicoterapia em casos deste género foram: Fernanda Canelhas, Fernanda Prim e António de Oliveira. Esta prática é principalmente caracterizada pela experiência/experimentação sonora e experiência musical, sendo este o principal conteúdo das sessões de terapia em questão.

A relação terapêutica compreende, em Musicoterapia, as sinergias entre o paciente, a música e o terapeuta. Significando portanto, que a música não pode ser considerada como terapia em si mesma, pese embora como técnica preparatória, as técnicas musicoterapêuticas devem ser elaboradas com os olhos postos nesse objectivo. Por razões óbvias, não partilhamos da mesma ideia, pois consideramos a musicoterapia um potencial auxiliar do ensino ordinário, sem que para isso sejam imediatamente incorporadas doenças e patologias graves.

A Musicoterapia distingue-se do ensino da música, na medida em que a primeira tem por objectivo fins terapêuticos e a segunda transmissão de conhecimentos, de conceitos, de convenções e de técnicas instrumentais.

Achamos um pouco exagerada esta afirmação pois, em nosso entender, não se deve conferir à musicoterapia um papel curativo em absoluto. Para nós, é e será uma metodologia primordial para a ajuda a algo, nem que seja o ser humano a ter melhor qualidade de vida, ou até a saber apreciar melhor a sua vida e a musicalidade do mundo que o rodeia, e isso não quer dizer que essa pessoa seja um paciente. Caso seja aceite esta tendência, todo o ser humano é paciente em relação à música, pois é infinita a sua capacidade de surpreender, de emocionar, de fortalecer, de enfraquecer, de amenizar, de revoltar, de reforçar momentos, de alterar o nosso plano emocional e o nosso plano físico. Em suma, é capaz de modificar o homem.

Tudo poderá ser música e tudo poderá ser musicoterapia. Pois um aluno pode ter necessidade de ser submetido a experiências musicoterapêuticas, para desenvolver capacidades e fazer desabrochar outros talentos de apreciação do mundo ainda ocultos e, ao mesmo tempo, a um paciente da musicoterapia pode ser administrada a prática instrumental ou o canto de forma a recuperar caducidades adormecidas.

Para J. Calvin (1973), é notório o contributo da Musicoterapia no processo criativo tendente à auto-compreensão, ao aperfeiçoamento das capacidades e da intenção de empregar o potencial individual num ser humano, em domínios como a independência, a liberdade, a adaptabilidade, o equilíbrio e a integração.

Segundo o mesmo autor (1973), este conjunto de terapias desejam educar e reeducar o indivíduo no âmbito das suas reais possibilidades. Pretende ainda abrir ou reabrir portas na comunicação nunca abertas ou que, por uma ou outra razão, se foram fechando gradualmente. Sabemos que sem comunicação não há desenvolvimento, não há contacto físico e psicológico, enfim tudo é estático e ténue na consagração dos seus objectivos.

Para C. Bang (1973), os princípios básicos da actuação musicoterapêutica, estão presentes constantemente na comunicação e no contacto.: Primeiramente acha que a música pode estabelecer a ponte que faça o contacto com a ausência de palavras, pois na musicoterapia encontramos potencialidades pouco usadas noutras áreas de comunicação, sendo que estas interagem e ajudam profundamente o desenvolvimento de uma linguagem própria.

Em segundo plano, elege a música como meio de comunicação de carácter emocional, pois ela aplica-se onde a comunicação verbal não chega facilmente.

Por último, pretende desenvolver o que já existe na criança, pois é claro e sabido que o paciente descobre e desenvolve facilmente as suas potencialidades bem mais que as suas limitações.

É difícil definir com precisão onde começa a música e acaba a musicoterapia. Achamos que a música deveria ter em si mesma, integrada numas das suas áreas curriculares e conteúdos, a aprendizagem de técnicas e metodologias ligadas à musicoterapia, no sentido lato de prevenção e melhoramento da qualidade de vida do ser humano.

Concordamos com o que diz M. Geck (1973) quando se opõe ao uso exacerbado e directivo de matérias instrumentais para colmatar necessidades terapêuticas, pois esquece-se facilmente que o tronco comum da Musicoterapia se orienta sobretudo na senda da descoberta de possibilidades de comunicação entre seres humanos.

Quando se querem impor instrumentários rígidos e específicos para fins terapêuticos, dever-se-ia antes de mais facilitar o acesso das pessoas comuns a eles e, somente depois, tentar algum domínio técnico acompanhado do prazer da criação e da improvisação musical.

Para Lecourt (1988), o objectivo capital da musicoterapia não é a música, nas suas vertentes mais desenvolvidas, ou seja, saber, ensinar ou tocar. Em terapia, a música é um meio e não um fim. Pode também ser o alívio do sofrimento psíquico através de produções no mundo dos sons. Não interessa o tipo de sons, de música ou de ruídos que os pacientes produzem, mas que produzam, que os criem, que através deles expressem os seus sentimentos e emoções.

Criança com autismo, foto Thinkstock

Criança com autismo, foto Thinkstock

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