Musicoterapia e autismo

Criança com autismo brincando

A aplicação da Musicoterapia numa Criança com Espectro de Autismo

Juliana Janela Azevedo

A música, cujo efeito sobre a mente é inegável, e é muito utilizada em técnicas de relaxamento, apresenta a vantagem de ser muito apreciada pelas crianças com perturbação do espectro do autismo e por isso a musicoterapia é uma técnica de aproximação a estas crianças. As experiências musicais que permitem uma participação activa (ver, ouvir, tocar) favorecem o desenvolvimento dos sentidos das crianças.

Ao trabalhar com os sons, ela desenvolve acuidade auditiva; ao acompanhar gestos ou dançar, ela trabalha a coordenação motora, o ritmo e a atenção; ao cantar ou imitar sons, ela descobre as suas capacidades e estabelece relações com o ambiente em que vive.

Juliana Janela Azevedo

As crianças com perturbação do espectro do autismo apresentam-se “desconectadas”, ausentes na sua presença, rítmicas nos seus rituais e nas suas estereotipias, melódicas nas suas ecolálias e nos seus gritos, harmónicas nas suas desarmonias.

Desde há vários anos que se utiliza a música como instrumento terapêutico e preventivo em medicina e a sua importância manifesta-se através de um grande número de artigos de investigação e no interesse próprio dos médicos e psicólogos no tratamento de pacientes críticos. É considerada como um meio de expressão não verbal, é um tipo de linguagem que facilita a comunicação e a exteriorização de sentimentos, permitindo às pessoas descobrir o que há no seu interior e partilhá-lo com os seus pares.

A musicoterapia é uma disciplina funcional e sistemática que requer métodos e técnicas específicas para manter ou reabilitar a saúde dos doentes. Neste processo sistemático, a relação e a experiência musical atuam como forças dinâmicas de mudança, facilitando a expressão emocional do sujeito, o seu desenvolvimento comunicativo e a adaptação e integração à sua nova realidade social. É importante assinalar que a musicoterapia só deve ser aplicada por terapeutas com formação nesta área. Existem circunstâncias nas quais a terapia musical pode ter efeitos negativos, particularmente se não se pratica correctamente.

As crianças com perturbação do espectro do autismo, especialmente nas primeiras etapas, podem recusar ou ignorar qualquer tipo de contacto com outra pessoa, inclusive com o terapeuta. No entanto, um instrumento musical pode servir de intermediário efectivo entre o paciente e o terapeuta, oferecendo-lhe um ponto de contacto inicial. Por outro lado, descreveu-se que a música e a musicoterapia podem ser muito efectivas em reforçar e mudar o comportamento social da criança com perturbação do espectro do autismo.

Na área da comunicação, a musicoterapia facilita o desenvolvimento global da criança, ou seja, o processo da fala e vocalização, estimulando o processo mental relativamente a aspectos como conceptualização, simbolismo e compreensão. Adicionalmente, regula o comportamento sensitivo e motor, o qual está frequentemente alterado na criança com perturbação do espectro do autismo. Neste sentido, a música como actividade rítmica é efetiva em reduzir comportamentos estereotipados. Por último, a musicoterapia facilita a criatividade e promove a satisfação emocional. Este aspecto leva-se a cabo através da liberdade do paciente no uso de um instrumento musical, à margem do tipo de sons que podem sair dele.

As fontes de conhecimento da criança são as situações que ela tem oportunidade de experimentar no dia-a-dia. Dessa forma, quanto maior a riqueza de estímulos que ela receber melhor será o seu desenvolvimento intelectual. Nesse sentido, as experiências rítmico-musicais que permitem uma participação activa (vendo, ouvindo, tocando) favorecem o desenvolvimento dos sentidos das crianças.

Ao trabalhar com os sons, ela desenvolve a sua acuidade auditiva; ao acompanhar gestos ou dançar, ela trabalha a coordenação motora, o ritmo e a atenção; ao cantar ou imitar sons ela descobre as suas capacidades e estabelece relações com o ambiente em que vive.

Juliana Janela Azevedo

A abordagem pedagógica da criança autista depende muito do pragmatismo, espírito de criatividade, experiência e bom senso do educador, e deve ser complementada com o auxílio de recursos diversos como imagens, desenhos, pinturas, música, jogos, brinquedos especiais, actividades artísticas, manipulação com massas e, ultimamente, trabalhos com computador. O importante é estimular a criança, dar-lhe actividades, tanto físicas quanto mentais, e não deixá-la isolar-se e afundar-se nas estereotipias, que acabarão por dominá-la, atrofiando ainda mais o seu sistema cognitivo, caso não haja uma estimulação permanente.

As técnicas educacionais como o ABA (Applied Behavior Analysis), o método TEACCH (Treatment and Education of Autistic and related Communicationhandicapped Children), e o PECS (Picture Exchange Communication System) vêm-se expandindo com relativo sucesso, nestas ultimas décadas. O tratamento comportamental analítico (ABA) da perturbação do espectro do autismo visa ensinar à criança comportamentos que ela não possui, através da introdução destes por etapas. Cada comportamento é ensinado, em geral, num esquema individual, inicialmente apresentando-o associado a uma indicação ou instrução. A resposta adequada da criança tem como consequência a ocorrência de algo agradável para ela, o que na prática é uma recompensa; quando a recompensa é utilizada de forma consistente, a criança tende a repetir a mesma resposta.

O método TEACCH já referido anteriormente, desenvolvido nos anos 60, baseia-se na organização do ambiente físico através de rotinas e sistemas de trabalho, de forma a adaptar o ambiente para tornar mais fácil para a criança compreendê-lo, assim como compreender o que se espera dela; através da organização do ambiente e das tarefas da criança, o TEACCH visa desenvolver a independência da criança. O sistema de comunicação através da troca de figuras (PECS) foi desenvolvido para ajudar crianças e adultos com perturbação do espectro do autismo e com outras alterações do desenvolvimento a adquirirem comportamentos de comunicação; visa ajudar a criança a perceber que através da comunicação ela pode conseguir muito mais rapidamente as coisas que deseja, estimulando-a assim a comunicar-se e a diminuir os problemas de comportamento.

Como recurso terapêutico complementar de grande importância, salienta-se a musicoterapia. A música, cujo efeito sobre a mente é inegável, e é muito utilizada em técnicas de relaxamento, apresenta a vantagem de ser muito apreciada pelas crianças com perturbação do espectro do autismo. A musicoterapia é a primeira técnica de aproximação com estas crianças. Pode considerar-se que elas são uma espécie de feto que se defende contra os medos de um mundo externo desconhecido e contra as sensações das deficiências do seu mundo interior. Portanto, é importante trabalhar em etapas com elementos de regressão, ou seja, musicoterapia passiva ou receptiva (o paciente é submetido ao som sem instruções prévias), de comunicação e de integração.

As actividades com música, por exemplo, servem como estímulo à realização e ao controlo de movimentos específicos, contribuem para a organização do pensamento, enquanto as actividades em grupo favorecem a cooperação e a comunicação. Além disso, a criança fica envolvida numa actividade cujo objetivo é ela mesma, onde o importante é o fazer, participar, em que não existe cobrança de rendimento, a sua forma de expressão é respeitada, a sua ação é valorizada e, através do sentimento de realização, ela desenvolve a auto-estima. As necessidades educativas das pessoas com perturbação do espectro do autismo devem ser determinadas individualmente.

As actividades musicais favorecem a inclusão de crianças com perturbação do espectro do autismo. Pelo seu carácter lúdico e de livre expressão, não apresentam pressões nem cobranças de resultados, são uma forma de aliviar e relaxar a criança, auxiliando-a na desinibição contribuindo para o envolvimento social, despertando noções de respeito e consideração pelo outro e abrindo espaço para outras aprendizagens.

Juliana Janela Azevedo

As actividades técnicas que incorporam a música de uma forma interactiva, podem ser de muito valor para as terapias de crianças com perturbação do espectro do autismo. As técnicas de terapia musical podem ajudar estas crianças a serem mais espontâneas na comunicação, a romperem o seu padrão de isolamento, a reduzirem a sua ecolália, a socializarem-se e a compreenderem mais a linguagem.

Devido às diferenças entre indivíduos com perturbação do espectro do autismo, não existem regras universais sobre como se deve aplicar a terapia musical. Umas crianças podem reagir positivamente a certa técnica, enquanto outras podem fazê-lo negativamente. A música pode ser um instrumento muito poderoso para romper padrões de isolamento ao prover um estímulo externo. Mas, por outro lado, a terapia musical pode criar uma sobrecarga no sistema nervoso de algumas pessoas com perturbação do espectro do autismo, e aumentar as reações de auto-estimulação.

Alguns investigadores mencionam que a terapia musical em crianças com perturbação do espectro do autismo pode:

romper com os padrões de isolamento e abandono social e contribuir para o desenvolvimento sócio-emocional: o isolamento social é reconhecido como uma das principais características da perturbação do espectro do autismo desde há muitos anos. Romper este padrão de isolamento e introduzir a criança com esta perturbação em actividades externas, em vez de internas, é importante para combater os seus problemas cognitivos e perceptivos. As crianças com perturbação do espectro do autismo, especialmente nas etapas iniciais do estabelecimento de relações, usualmente rejeitam e ignoram as tentativas de contacto social iniciadas por outras pessoas.

A terapia musical pode fornecer alternativamente, um objecto de interesse mútuo através de um instrumento musical. Em vez de ele ser ameaçador, a forma, o som e o tacto do instrumento podem fascinar a criança com perturbação do espectro do autismo. O instrumento pode converter-se num inter-médio entre o paciente e o terapeuta, provendo um ponto inicial de contacto. Ao mesmo tempo, um terapeuta com experiência pode estruturar a experiência desde o princípio da terapia para minimizar efeitos negativos tais como sobrecarga sensorial e rituais auto-estimulantes. O som do instrumento, assim como o seu aspecto visual e táctil, podem ajudar a criança a compreender que outra pessoa o está a criar.

A música e as outras experiências musicais podem ser fonte de quantidades inumeráveis de tipo de relações. Uma vez que a barreira tenha sido ultrapassada, o terapeuta musical continua com uma série de experiências estruturadas que podem aumentar a atenção destas crianças e libertá-las do seu mundo. Apesar do processo poder ser lento e árduo, a terapia musical é um instrumento inusual e prazenteiro que pode adaptar-se para chegar às necessidades do paciente. Para além do progresso individual e do começo de relações, a terapia musical é também uma forma efectiva de ensinar comportamentos sociais. Deve ser estruturada para garantir uma melhoria nas crianças com perturbação do espectro do autismo. Apesar das interações verbais poderem ser limitadas, as interações sociais podem aumentar quando os pacientes aprendem num ambiente estruturado e adaptado a eles.

Facilitar a comunicação verbal e não-verbal: a dificuldade na comunicação funcional das crianças com perturbação do espectro do autismo pode depender fundamentalmente da sua inabilidade para manipular símbolos e representações simbólicas; por outras palavras, a criança não pode “ver” ou “escutar” mentalmente algo que não está representado no ambiente. A linguagem, um sistema simbólico verbal, é difícil de entender para elas. A “linguagem autista” está sempre acompanhada por mudez, ecolália ou iniciativa de comunicação limitada. A terapia musical na área de comunicação, incentiva a verbalização e estimula os processos mentais em relação à conceptualização, ao simbolismo e à compreensão.

Ao nível mais básico, a terapia musical trabalha para facilitar e suportar o desejo ou necessidade de comunicação. Acompanhamentos improvisados, durante as expressões habituais do paciente, podem demonstrar uma relação de comunicação entre o comportamento do mesmo e as notas musicais; as crianças com perturbação do espectro do autismo podem perceber estas notas mais facilmente que aproximações verbais. Mesmo que estas crianças comecem a mostrar intenções comunicativas (verbais e não-verbais), a música pode usar-se para motivar a vocalização.

Aprender a tocar um instrumento de sopro é, de alguma forma, equivalente a aprender a vocalizar e também ajuda a utilizar os lábios, a língua, o maxilar e os dentes. O uso de padrões melódicos e rítmicos fortes durante as instruções verbais também se demonstrou benéfico, ao manter a atenção e melhorar a compreensão da linguagem falada. A terapia musical pode em algumas instâncias reduzir as vocalizações não comunicativas que impedem o progresso durante a aprendizagem da linguagem.

Reduzir os comportamentos consequentes de problemas de percepção e de funcionamento motor e melhorar o desenvolvimento nestas áreas: as crianças com perturbação do espectro do autismo, usualmente, mostram uma marcada ausência de respostas afectivas ao estímulo e isto contribui para que exista algum defeito no processamento destes estímulos. Muitas destas crianças respondem favoravelmente ao estímulo musical. As suas respostas afectivas positivas podem melhorar a participação noutras actividades desenhadas para promover a linguagem e a socialização. Além disso, a música pode fornecer um contexto muito útil para incentivar o desenvolvimento da curiosidade e do interesse exploratório dos estímulos.

As crianças com perturbação do espectro do autismo têm comportamentos “musicais” que são indicativos de como a música pode ser importante para fazê-las emergir do seu mundo. Alguns exemplos destes comportamentos são a repetição de segmentos de canções escutadas, o ritmo espontâneo, a atração por certos sons, timbres ou fontes sonoras e o movimento espontâneo a certo tipo de música. As actividades musicais terapêuticas propostas são:

Canto: as canções podem ser adaptadas a todos os níveis de funcionamento. São uma fonte de segurança emocional e estabilidade, fonte de estimulação em todas as áreas de funcionamento e uma via para a comunicação verbal.

Tocar instrumentos: é um comportamento musical tangível e estruturado. Oferece a oportunidade de fazer música desde um nível simples até a um complexo, aumenta a participação na actividade musical, estimula a libertação de emoções e dá à criança uma sensação de vitória. Para além disto, aumenta a coesão do grupo, as habilidades sociais e a atenção, melhora a coordenação motora, fina e grossa, e a coordenação óculo-manual, melhora a percepção auditiva, visual e táctil e redirige o comportamento não adaptativo. Algumas crianças tocam instrumentos de maneira adequada, enquanto para outros os instrumentos se tornam uma via de expressão; mas as duas situações são igualmente satisfatórias desde o ponto de vista terapêutico.

Movimento com a música: compreende a actividade motora grossa rítmica, locomoção básica, movimentos psicomotores livres e estruturados, actividades perceptíveis-motoras, dança e movimento criativo, Baile social, movimento combinado com canto ou toque conjunto de instrumentos. A criança com perturbação do espectro do autismo é arrítmica por natureza. A aplicação do aspecto rítmico da música à psicologia desta perturbação baseia-se no princípio lógico de reabilitação, compensa-se a pessoa com os desenvolvimentos/comportamentos que não possui. O conceito “ritmo” deve ser estruturado, generalizado, de maneira que os ajude a tomar consciência esquematizada da sua própria realidade exterior.

A criança com perturbação do espectro do autismo centra-se numa actividade dinâmica-motora que o diverte e, sem se dar conta, é levado progressivamente a uma consciência de ser actor voluntário. No caso de dificuldades motoras a níveis mais baixos, o terapeuta percute ritmicamente o corpo da criança, executa movimentos pausados sincronizados, experimenta sensações visíveis de bem-estar, estimulantes e relaxantes, e vai arquivando comportamentos rítmicos naturais. O som é a matéria constitutiva da música. Em musicoterapia, utiliza-se o som e não o ruído.

O som pode-se aplicar como terapia utilizando as diferentes formas em que se apresenta e em todas as variantes e componentes. É importante que o terapeuta conheça e saiba definir conceitos como som, música, melodia, harmonia, música instrumental, vocal, sons agudos, graves, voz, sopranos, tenor, formas musicais, entre outros. Todas estas variantes e formas de som têm um valor terapêutico muito especial.

Das qualidades do som, o timbre tem o papel terapêutico mais importante. A concordância da música com o estado de ânimo do individuo deve estender-se ao timbre preferido (corda, sopro, precursão…), ao instrumento preferido, à voz/coro favorito ou à combinação instrumental-voz eleita. A tarefa de averiguar a identidade sonora de cada indivíduo é essencial em musicoterapia.

A voz é o instrumento mais próximo e terapêutico de que o terapeuta musical dispõe. A utilização da voz como elemento dinâmico supõe uma forma de contacto directa e próxima com a criança com perturbação do espectro do autismo. A capacidade do terapeuta para projectá-la, modulá-la e regulá-la, é um elemento chave para os ganhos que se pretendem. As alterações, intensidades e diversidade de sons que a voz pode permitir abarcam o cúmulo de possibilidades rítmicas e as qualidades de altura tonal, intensidade, duração e timbre. O musicoterapeuta deve ser um artista da voz.

A altura tonal, juntamente com a intensidade (outras qualidades do som), situa a criança com perturbação do espectro do autismo no limite da fronteira entre a ansiedade, o nervosismo, a angústia, a serenidade e o recolhimento. Não se devem utilizar tons agudos durante a terapia. A criança com esta perturbação, ao ouvir os tons agudos, tapa os ouvidos e isola-se. Uma tonalidade média, a preferida, corresponde a 300-400 vibrações por segundo. As intensidades devem regular-se de modo a que em nenhum caso excedem os 30-40 decibéis. Gritar para uma criança com perturbação do espectro do autismo é um erro grave, que deve ser evitado.

Durante a terapia musical deve reservar-se um tempo para o jogo, para as canções específicas e pessoais com o nome da criança e o seu envolvimento afectivo familiar, para uma improvisação ordenada e dirigida tanto por parte do terapeuta como de quem assiste às sessões. Deve planificar-se uma experiência tímbrica sonora, com o piano por exemplo, onde a criança contacte com o teclado cada vez que o terapeuta mude registos e timbres instrumentais.

Alguns autores sugerem o uso de material sonoro-musical durante a gestação, como método preventivo da perturbação do espectro do autismo. A terapia musical não é só um processo no qual se utilizam as fortalezas do indivíduo para melhorar as suas debilidades, mas também um processo para refinar e melhorar estas fortalezas.

A Aplicação da Musicoterapia numa Criança com Espectro do Autismo, Estudo de Caso, por Juliana Janela Azevedo, II Ciclo em Ciências da Educação – Educação Especial, Sob orientação do Professor Doutor José Carlos de Miranda. UCP – Centro Regional de Braga, Faculdade de Ciências Sociais, 2012. Excerto.

Leia AQUI a dissertação completa, se o desejar.

Criança com autismo brincando

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