Atraso dos 13 à adultez

Jovem tocando (Otakar Kraus Music Trust)

MÚSICA E ATRASO DOS 13 À ADULTEZ

por Cibelle Loureiro

Excerto de Musicoterapia na Educação Musical Especial de Portadores de Atraso do Desenvolvimento Leve e Moderado na Rede Regular de Ensino, por Cybelle Maria Veiga Loureiro. Minas Gerais 2010.

Para Piaget este é o estádio em que o adolescente já não se limita a representação imediata, tornando-se capaz de abstração total. Para ele, as estruturas cognitivas da criança alcançam o seu nível mais elevado de desenvolvimento, o que a possibilita aplicar o raciocínio lógico a todo tipo de problemas que enfrentem. Para os nossos alunos, este raciocínio talvez ainda seja uma dificuldade a ser vencida.

Para Piaget todo o adolescente vive o conflito entre ser criança e ser adulto durante muitos anos. Talvez desde a metade do período concreto operacional. Discutem como tornarem-se livres do papel de serem crianças, mesmo ainda não podendo assumir as responsabilidades de um adulto. Por isso, esta etapa é comumente chamada período de transição, pois agrupa o desenvolvimento pessoal, social e educacional do indivíduo.

Para o portador de atraso do desenvolvimento, os desafios da adolescência são intensificados em vários aspectos. Muitos deles não apresentam diferenças físicas em relação aos seus colegas não deficientes, mas a capacidade de cooperar com as demandas do meio ambiente pode ser desafiadora e até mesmo traumática.

As pessoas portadoras de atraso do desenvolvimento às vezes apresentam uma auto-estima negativa quando chegam a essa idade, tornam-se conscientes das suas próprias limitações e capacidade de enfrentar a vida.

Para alguns aceitar a deficiência é um grande problema. O medo de errar, o sentimento de inferioridade e insegurança são algumas das dificuldades que podem surgir numa aula de música. Alguns desses sentimentos são comuns, pois fazer música pode ser desafiador em vários momentos, o que faz dela um excelente instrumento para superarmos esses desafios. Diferenciar uma música alegre de uma música triste ou uma que seja agitada de uma música calma pode auxiliar no reconhecimento desses sentimentos.

Devido às limitações experimentadas durante toda a vida relacionadas com a sua deficiência, estas pessoas podem ter uma maior necessidade de vencer sentimentos mais desafiadores ainda como a pena, a depressão e a solidão. O agravamento dessas necessidades emocionais e limitações físicas podem impedir que estes alunos utilizem os meios comuns para expressar ou ainda nomear os seus sentimentos.

PERSONALIDADE E DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL

Muitos dos comportamentos observados nesses alunos podem ser explicados como sendo devido à discrepância entre as habilidades que eles possuem e as solicitações exigidas pelo meio ambiente. O caso que descreveremos ilustra essa afirmativa.

Caso ilustrativo

Marilda, nome fictício, tem quinze anos e foi diagnosticada na primeira infância como portadora de atraso do desenvolvimento leve. Desde os quatro anos de idade ela demonstrava uma grande facilidade para fazer música. Passava horas ao piano da avó procurando tocar uma música “de ouvido”. Como neta de pianista e compositora, sobrinha e filha de professoras de música, Marilda logo foi colocada a aprender a tocar piano. A sua avó passou a dar-lhe aulas de música.

Na escola, o seu desenvolvimento musical demonstrava ser igual ou melhor que alguns dos seus colegas não deficientes da mesma idade, principalmente quanto à sensibilidade musical – “habilidade de receber e responder ao estímulo musical”.
Desde a idade pré-escolar, sempre que possível, era solicitada para tocar uma música para as visitas em sua casa e nos eventos da escola.

Possuidora de uma personalidade tímida, delicada e muito alegre, não sabemos se Marilda tocava porque gostava ou se o fazia por obediência. Ao atingir a idade escolar, já tinha um repertório musical grande que a diferenciava da maioria das crianças. Aos doze anos, essa diferenciação já não era a mesma e as dificuldades para aprender as músicas que a avó achava que ela já estava na idade de aprender, passaram a ser um desafio ao ego de Marilda.

Todas as pessoas desenvolvem os seus próprios meios de demonstrar os seus desejos, medos, necessidades e maneira de interagir com as pessoas. A maneira que Marilda escolheu não foi a melhor. Nunca mais quis tocar piano, embora gostasse muito. O facto de ficar sem a música, desencadeou emocionalmente em Marilda um quadro emocional de ansiedade e de automutilação.

Na escola, a professora de música observou mudanças no contacto de Marilda com as pessoas. Quando solicitada a fazer qualquer tarefa, mesmo não sendo musical, se ela não conseguisse realizá-la, mordia as mãos e chorava compulsivamente até que abandonou a escola.

A professora de música procurou consultoria de uma musicoterapeuta e juntas procuraram restabelecer o contacto de Marilda com a música. Algumas estratégias passaram a ser adotadas pela professora na sala de aula seguindo conselho e acompanhamento do terapeuta. Sempre que possível e de forma realística a professora trabalhava a auto-estima e o fortalecimento do ego de Marilda, pedindo a sua ajuda quando um colega apresentava dificuldade em uma atividade.

Para trabalhar a auto-estima cria-se uma situação onde uma pessoa vivencia uma experiência que a possibilite mostrar a sua competência e consistência no que faz ou sente. Quando falamos em trabalhar o fortalecimento do ego, referimos-nos ao ego como uma função mediadora entre os impulsos, desejos e necessidades de uma pessoa e o meio ambiente. Essa é uma função que desenvolvemos desde a infância até a idade adulta.

Várias tentativas foram feitas para fazer com que Marilda voltasse a tocar. Outros instrumentos lhe foram oferecidos, mas ela não demonstrou interesse por nenhum deles. O objetivo principal era o de estimular o desejo e incitar o querer modificando o quadro motivacional de Marilda.

Motivação é definida como alguém pelo “querer” alcançar um objetivo, sendo o indivíduo motivado em “direção a” e “por” esse objetivo. Motivação representa alguma “necessidade” ou “desejo”.

Após várias tentativas da professora e convite dos colegas que sabiam da sua dificuldade, Marilda passou a frequentar os ensaios do grupo instrumental da escola. Sob a orientação do terapeuta, a professora passou a tocar teclado eletrónico nos ensaios do grupo, a fim de motivar de forma extrínseca o interesse de Marilda pelo instrumento. Ela demonstrou rapidamente interesse em saber como funcionava, mas não em tocar.

A professora fez algumas explicações sobre o funcionamento do instrumento e deixou Marilda explorá-lo sozinha, tentando motivá-la intrinsecamente. Logo depois passou a ter aulas individuais de teclado, onde no início somente ouvia a professora tocar. Aos poucos ela se interessou em tocar e fê-lo exatamente como quando começou a tocar.

Voltou a “tirar de ouvido” músicas que a professora tocava e que faziam sucesso nos meios de comunicação. Hoje o teclado é o seu instrumento de lazer. Vários convites foram feitos para que ela tocasse teclado no grupo da escola, mas ela nunca mais voltou a tocar para outras pessoas.

A música pode exercer um papel primordial na satisfação das necessidades intelectuais e emocionais do adolescente. Pode ser um meio afetivo forte e reconfortante. No dia a dia da escola o objetivo de desenvolvimento da auto-estima e fortalecimento do ego desses adolescentes, talvez somente possa ser exercitado na aula de música.

Jovem tocando (Otakar Kraus Music Trust)

Jovem tocando (Otakar Kraus Music Trust)

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